“Vivia em outro mundo, principalmente pelas crianças e adolescentes deste Brasil” Por Déa Januzzi
Antônio Carlos deixa um grande legado para a educação brasileira.
“Vivia em outro mundo, como um sonhador, como um louco que é louco pelos outros, principalmente pelas crianças e adolescentes deste Brasil”.
Conheci o pedagogo Antonio Carlos Gomes da Costa quando ele era presidente da extinta Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), em Belo Horizonte. Como repórter, não imaginava que dentro de uma estrutura sombria e cruel estava um educador sensível, com a voz suave que lembrava uma canção. Guerreiro incansável das injustiças sociais intoleráveis, Antonio tinha o poder do pensamento e da palavra, para dizer em pleno regime militar: “A Febem é o AI-5 do menor”. Sobre as fugas dos menores, ele sentenciava: “Os meninos que fogem ainda têm chance de sair desse pesadelo. Ainda têm dignidade. Os que não tentam fugir estão perdidos, para sempre institucionalizados”.
Com Antonio aprendi muito, principalmente a ficar em silêncio para beber cada palavra, cada pensamento dele. Antonio me nutria como repórter iniciante, como mulher em busca de um lugar no mundo e de uma profissional indignada com o regime autoritário e uma política da criança e do adolescente regida pelo brutal Código de Menores.
Com o poder de mudar a realidade, Antonio ouvia aquela indignada repórter e pedia paciência, palavra que os jovens não adotam no dicionário da vida. Aprendi com Antonio que educar é sempre uma aposta no outro; que o educador também precisa se educar, aprender. De Antonio, ouvi pela primeira vez a expressão protagonismo juvenil, uma nova linguagem que ele criou para a Fundação Odebrecht para tirar os jovens dos bastidores, e transformá-los em atores principais.
Com Antonio viajei, sem sair do meu front, para os caminhos e descaminhos da educação, tive uma aventura pedagógica, aprendi sobre a pedagogia da presença e que o exemplo é a única forma de educar uma criança. Com Antonio soube que hoje os jovens estão abraçando projetos de morte e não de vida.
Enquanto eu crescia como repórter, Antonio voava como oficial de projetos do Unicef, de diretor executivo e presidente do Centro Brasileiro para Infância e Adolescência (CBIA) e conselheiro das fundações Abrinq, Andi e Instituto Ayrton Sena, numa trilha de desbravador em busca dos verdadeiros diamantes. Antonio encontrou muitas pedras preciosas, mas nunca se iludiu com o brilho falso do poder.
Com Antonio amadureci, entre conversas e uma barca daquelas enormes do japonês, com sushis e sashimis. A conversa ia longe, regada a saquê e sonhos por um mundo melhor. Com Antonio por perto, a vida era mais fácil, menos pesada, porque ele fazia acontecer as políticas públicas em defesa das crianças e adolescentes do Brasil, representando o país no Conselho Interamericano da Criança (OEA), em Montevidéu, ou como perito no Comitê da ONU em Genebra.
Com Antonio defendi uma nova política para a criança e o adolescente. Antonio também estava lá, presente como um dos redatores do ECA. Vinte anos depois da implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente, ligava para Antonio quando os críticos pediam o rebaixamento da maioridade penal e ele me explicava, com a ternura de sempre, quem e por que tanta censura ao ECA.
Antonio era uma espécie de ídolo para mim e um ícone para o Brasil e o mundo quando se falava em criança e adolescente. Antonio nunca desejou jovens obedientes, mas independentes e responsáveis. E por eles lutou a vida toda.
Perto de Antonio, eu acreditava que o mundo tinha jeito, que a mesmice podia ser expulsa deste país, que as crianças e os jovens tinham futuro. Perto de Antonio não havia decepções nem desencantos. Casado com Maria José, eles não tiveram filhos, mas Antonio proclamava: “Não vou deixar herdeiros biológicos, mas pedagógicos”. E como o mundo precisa dos herdeiros de Antonio, com seu modo de fazer e de pensar sobre ética, dignidade e responsabilidade social.
Com Antonio aprendi que a vida é mais do que consumismo. Quantas vezes ele confessou que poderia ter mansões, carros, bens materiais, mas preferiu viver de aluguel em Lagoa Santa onde plantou a sua semente – a Fundação Antonio Carlos e Maria José (FAMJ), para formar socioeducadores. Ele preferia preparar o futuro das crianças e dos adolescentes do que o próprio.
Cuidava de todo mundo, dos que trabalhavam com ele, dos amigos, das inúmeras empresas que disputavam seus projetos. Mas Antonio se esquecia de cuidar de si mesmo. Não ligava para roupas nem para a saúde. Vivia em outro mundo, como um sonhador, como um louco que é louco pelos outros, principalmente pelas crianças e adolescentes deste Brasil.
Mas no dia 4 de março, véspera de carnaval, surpreendeu a todos com sua morte, depois de uma queda dentro de casa. Ele nos deixou mancos, machucados e feridos na alma, com um desfecho que ninguém esperava. Da minha parte, confesso que fiquei órfã outra vez!
Homenagem da Jornalista Déa Januzzi / Jornal Estado de Minas