Vítima de abuso sexual na infância não consegue processar agressor depois de adulta
Há 15 anos, quando morava na França, estimulada por uma campanha contra o abuso e a exploração sexual infantil, a professora e tradutora, Samara Christina (nome fictício), 34 anos, resolveu denunciar que tinha sofrido agressões do seu padrasto na infância. Descobriu, então, que não bastava coragem para comunicar o seu drama. No Brasil, local da violência ocorrida, a lei só permitia que a denúncia fosse feita até seis meses após a maioridade, mas pela legislação francesa, era possível entrar com processo contra o agressor até dez anos depois.
Ela procurou a Childhood Brasil, para contar o seu caso e alertar outras famílias sobre a dificuldade de condenar os autores de violência sexual infantil. “Eu não tenho vergonha de falar sobre o que e aconteceu e defender esta causa nobre, porque quero ajudar outras pessoas, mas não posso me identificar, porque já sofri várias ameaças e hoje sou uma mulher casada, não posso expor as pessoas que amo desta forma”, diz. “Além disso, não sinto que estou protegida pela Justiça”. Samara é francesa, mas foi criada no Brasil, dos três aos 18 anos de idade, depois morou mais nove anos na França, e hoje vive no Rio de Janeiro com o marido. Na época em que decidiu entrar na Justiça, tinha 20 anos, e estava cursando a faculdade quando resolveu desabafar com alguns amigos mais próximos. “Muitos foram contra e chegaram a debochar de mim, diziam que ia gastar minha juventude em algo que não ia dar em nada. Eu cheguei até a escutar que o estupro não era nada, que isso acontecia com muita gente”.
Um procurador brasileiro a desestimulou também a entrar com ação contra o autor do crime, porque ela não teria provas ou testemunhas. Vários advogados não quiseram pegar o caso e ainda disseram que ela poderia ser processada por difamação, se o acusado tivesse dinheiro para pagar bons profissionais.
Na França, recebeu mais apoio e logo seu caso prosseguiu para as instâncias superiores.
Ela ressalta como ponto desfavorável do atendimento da Justiça francesa o fato de ter que contar e recontar o caso para diferentes profissionais, revivendo muitas vezes trauma sofrido. “Tive que relatar muitas vezes a mesma história para a polícia, inspetor, advogado, psicólogo, psiquiatra, juiz, é um sofrimento muito grande de anos”. “Dos meus 18 aos 30 anos, quando a maioria dos jovens estava festejando, eu passei completamente envolvida com este assunto, até conseguir reconstruir minha relação afetiva com o mundo”.
Foram expedidos quatro mandados de prisão ao agressor, mas sem nenhuma resposta. “Eu passei por laudo psiquiátrico que provou que eu não estava inventando a história. Meu padrasto foi considerado culpado e pediram 25 anos de prisão, mas como ele não compareceu ao julgamento e não receberam nenhuma resposta das autoridades brasileiras, ele não foi condenado por falta de elementos”, conta. “Meu advogado da época foi fraco e não fez o mínimo esforço, exigindo respostas da Polícia Federal ou do Ministério da Justiça”.
Da queixa até o processo que terminou sem a prisão do acusado foram seis anos. “Cheguei a ouvir de uma juíza que eu só podia confiar na Justiça de Deus. Na época, achei um absurdo, mas hoje compreendo e não me arrependo. As leis precisam ser mudadas, e é preciso haver maior conscientização sobre o problema”.
Na opinião de Samara, a Justiça precisa ser mais ágil nestes casos e o laudo psiquiátrico precisa valer como prova, porque dificilmente haverá uma testemunha, já que os agressores cometem a violência sexual quando está sozinho com a criança e ela só vai entender muitas vezes o que lhe aconteceu quando vira adulta, porque carrega a culpa e confusão de sentimentos.
A comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados aprovou no dia 10 de agosto o projeto de lei 6719/09, da CPI da Pedofilia, que altera o prazo de prescrição dos crimes sexuais praticados contra crianças e adolescentes. Pelo texto, a prescrição do crime passa a contar apenas do dia em que a vítima completar 18 anos, a não ser que já tenha sido proposta penal.
Atualmente, o Código Penal (Decreto-Lei 2.848/40) determina a contagem da prescrição a partir do dia do crime. Após a prescrição, não é possível punir o agressor.
A proposta foi batizada de lei Joanna Maranhão, em homenagem à nadadora brasileira que denunciou ter sido abusada pelo treinador quando criança.