Rio Grande do Sul ganha mais dez salas de depoimento especial

O primeiro estado a criar uma sala de depoimento especial para crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de abuso sexual, há oito anos, inaugurará mais dez espaços com a mesma finalidade. Com o apoio da Secretaria de Direitos Humanos, o Rio Grande do Sul totalizará 26 salas acolhedoras, onde a inquirição é feita por meio de uma gravação de vídeo e áudio que será juntada ao processo.

A criança é ouvida em um local separado, por um técnico (psicólogo ou assistente social), enquanto na sala de audiência o magistrado, o promotor de justiça e o advogado acompanham o processo e enviam as perguntas necessárias ao profissional (por meio de um ponto no ouvido). O principal objetivo é poupar a criança de passar pelo constrangimento de reviver seu drama. Antes deste procedimento, a vítima de abuso precisava contar a sua história até oito vezes durante o processo na Justiça.

A iniciativa faz parte do Projeto Depoimento Sem Dano, com início em maio de 2003.

Hoje, este procedimento é adotado em 27 países e em 41 salas no Brasil. O juiz José Antônio Daltoé Cezar, de Porto Alegre, pioneiro da prática de oitiva especial no país, fala sobre a evolução deste tipo de depoimento no país.

Qual o balanço que o senhor faz da prática de inquirição especial desde a sua criação?

Embora o depoimento especial tenha começado em 2003, na 2ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre, somente em 2007 começou a ser mais divulgado nas outras regiões do país. De lá para cá, temos percebido avanços como a CPI da Pedofilia ter recomendado o depoimento acolhedor e também o Conselho Nacional de Justiça ter reconhecido como uma prática avançada. A Secretaria de Direitos Humanos é uma grande parceira e queremos agora batalhar para que o depoimento acolhedor torne-se uma política pública. A mídia, de forma geral, também tem ajudado fazendo um trabalho de boa qualidade, porque hoje tem muito cuidado quando fala da infância. Nós não conseguiríamos todo este desenvolvimento, se não tivéssemos a Childhood  Brasil como parceira. A ONG tem nos ajudado com estudos profundos em outros países da Europa e nos dado uma visibilidade grande no Brasil.

O método tem colaborado no combate da impunidade?

Sim. No Pará, onde há apenas uma sala especial, o nível de responsabilização dos autores do abuso sexual já chega a 80%, enquanto a média em Porto Alegre é de 70%.  Hoje a pena para este crime é inafiançável, podendo chegar a 15, 20 anos, em caso dos agressores serem familiares. O nosso sistema não deve nada para o exterior. Nos Estados Unidos já existem 900 centro de escuta com equipes especializadas, mas embora estejamos em menor número o atendimento tem sido satisfatório.

Quais são os equipamentos mínimos necessários para se instalar uma sala especial?

Precisamos de uma câmera de captação de imagem, um computador, integrados a uma sala de audiência, no qual o juiz possa acompanhar a gravação pela tela. Hoje os nossos equipamentos já estão um pouco obsoletos até, mas é possível realizar com poucos recursos.  Com menos de R$15 mil dá para ter uma sala de boa qualidade e tecnologia atualizada.

Quais as dificuldades que vocês ainda enfrentam hoje?

A Justiça, de forma geral, é muito conservadora. As pessoas não querem se expor sendo filmadas. Também recebemos críticas de alguns conselhos. Os psicólogos de forma geral apóiam a iniciativa, mas alguns profissionais ainda são contra, acredito por desconhecerem a importância da prática. É a única forma de punir um delito que na maioria dos casos não tem testemunhas nem prova material, porque é muito difícil haver um flagrante.

Não é fácil implantar as salas de escuta especial, porque é uma quebra de paradigma. Infelizmente, alguns ainda pensam que os depoimentos acolhedores significam uma “fábrica de condenações, e que a criança ficaria responsável pela punição, muitas vezes, do próprio pai. Mas os casos existem e precisam ser revelados. Segundo estimativas, 90% dos abusos não são denunciados, porque ocorrem dentro da família (pai, tio, avô, padrasto) ou com pessoas muito próximas como vizinhos. O abuso traz uma confusão de sentimentos para a criança e ela, mesmo sendo vítima, passa a se sentir culpada e esconde o que aconteceu. É a chamada síndrome do segredo. Muitas vezes, também não fala por receber ameaças. Os 10% que conseguem falar sentem muito medo de que alguma coisa ruim seja feita contra eles. Nós temos que ouvir as crianças, é um direito delas falar em juízo.

Existem casos em que as mães separadas acabam induzindo os filhos a falar mal dos pais? Como identificar que é um falso testemunho?

São raros, mas existem. Os profissionais especializados conseguem detectar esses casos das chamadas síndromes de falsas memórias, devido a técnicas específicas vindas de muitas pesquisas acadêmicas, comprovadas no mundo todo. Nós tivemos apenas um caso com uma menina com síndrome de Down, que dizia ter sido molestada por um guarda do colégio, mas não conseguimos detectar isso no depoimento. A mãe tinha também alguns problemas psiquiátricos.

O tema ainda deve se desdobrar em muitos anos de estudo, porque é muito difícil falar em qualquer parte do mundo sobre o direito da sexualidade na infância e adolescência.

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