Para Marcelo Canellas, seu papel de jornalista e cidadão é quebrar tabus

Há mais de duas décadas na TV Globo, o jornalista Marcelo Canellas, de 47 anos, já denunciou esquemas de exploração sexual de crianças e adolescentes no Acre e de trabalho infantil no Nordeste. Ele também abordou a questão da desnutrição quando a imprensa já tinha esgotado o assunto e como desdobramento de uma de suas reportagens no Pará, ajudou a criar um fórum para discutir a exploração sexual em Breves, na ilha do Marajó.

Jornalista premiado, Marcelo tem sua carreira pontuada pela abordagem de questões sociais, o que ele considera um processo “natural” em um país como o Brasil. “Eu não consigo separar a preocupação cidadã com questões sociais, da profissão.” Para ele, o papel do jornalismo é tirar da sombra questões como a violência sexual contra crianças e adolescentes e levar este debate para a sociedade – um dos grandes objetivos também da Childhood Brasil.

Em bate-papo, o jornalista fala sobre a relação entre sua profissão e os direitos humanos.

Childhood Brasil – Como surgiu seu interesse pelo jornalismo?

Marcelo Canellas – Eu sempre gostei de narrativas, de contar histórias, de colecionar jornais. Alguns escritores que eu admiro são jornalistas, como Josué Guimarães e García Márquez. Mas como sou do interior do Rio Grande do Sul, de uma família de agrônomos, achei que teria mais campo de trabalho na Agronomia. Entrei no curso, mas não gostei. Abandonei a faculdade e, no ano seguinte, comecei a cursar Jornalismo.

CB – E quando você se descobriu um jornalista de direitos humanos?

MC – Desde sempre fui ligado às questões sociais. Na escola fui presidente do grêmio, e na faculdade, do Centro Acadêmico. Também fiz parte da executiva nacional dos estudantes de Comunicação. Eu não consigo separar a preocupação de cidadão com a vida, com as questões sociais, da profissão. Naturalmente fui cobrir temas que me preocupavam. O jornalismo aborda as contradições da vida e é natural, em um país como o Brasil, que as questões sociais virem insumos para reportagens.

CB – Foi esse engajamento que o levou a seguir uma linha mais investigativa?

MC – Como eu sempre gostei de narrativas, sempre me aprofundei nas reportagens. Trabalhei poucos anos com jornalismo diário. Fiquei bastante tempo no Globo Repórter e há dois anos estou no Fantástico, que é um espaço importante e generoso para se aprofundar nos temas.

CB – Quais foram as reportagens que mais o marcaram?

MC – Em 2001, eu e minha equipe fizemos uma série de reportagens sobre a fome para o Jornal Nacional, que causou uma discussão muito grande. Na redação, a discussão era que esse assunto já tinha se esgotado do ponto de vista jornalístico. Eu sugeri essa pauta em 1998, mas só consegui a aprovação para fazê-la em 2001. Nesses três anos, fui conhecendo histórias e levantei muita informação sobre o estado nutricional da população brasileira. Uma mulher que entrevistei para a série chamada Maria Rita, que morava no Vale do Jequitinhonha [em Minas Gerais], morreu de desnutrição aguda 15 dias depois que a reportagem foi ao ar.

Outra reportagem que me marcou foi a cobertura dos conflitos fundiários na Terra do Meio [no Pará] que foi ao ar pelo Bom Dia Brasil, e denunciou um esquema de grilagem de terras públicas e expulsão de caboclos e populações tradicionais.

Também fiz um Globo Repórter inteiro sobre trabalho infantil, que foi muito marcante.

CB – Você consegue manter um distanciamento dessas histórias?

MC – Não dá, há sempre um envolvimento emocional. Mas é necessário ir atrás da objetividade. Nas reportagens, a emoção tem de ser a da pessoa retratada, não a minha.

CB – E como cidadão, o que você procura fazer para ajudar o próximo?

MC – Sempre há desdobramentos depois de uma reportagem. Me lembro de uma vez quando fiz uma série chamada Povo das Águas para o Jornal Nacional. No estreito de Breves [ilha do Marajó, no Pará] me deparei com crianças e jovens mendigando, e descobri um esquema de exploração sexual na região. A reportagem causou muita repercussão e os partidos políticos locais me acusaram de estar manchando a imagem da cidade. Eu estava de férias e propus marcar um debate na cidade com a prefeitura, a Câmara e a sociedade civil. Cheguei em Breves e havia cerca de 200 pessoas me esperando, mas o prefeito mandou fechar com cadeado o auditório onde seria realizado o debate. Fomos para uma praça e discutimos sobre o assunto. A partir daí foi criado lá o Fórum de Enfrentamento da Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes. Como nesse exemplo, sempre procuro me informar sobre os desdobramentos das reportagens.

CB – O que acha do debate em torno da violência sexual?

MC – O assustador é que, ao contrário da violência contra adultos, o abuso sexual contra a criança ou adolescente pode acontecer dentro de casa, e é cometido por quem deveria protegê-la. É algo central nessa discussão e é desconfortável para a sociedade assumir isso.

CB – Nesse sentido, qual é o papel do jornalismo?

MC – O papel do jornalismo é tirar essa discussão da sombra. Essa violência está dentro de casa e a sociedade precisa saber disso. A partir do momento que esse assunto vira notícia, ele deixa de ser um problema da família e passa a ser uma questão que deve ser discutida e enfrentada por toda a sociedade.

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