Os direitos de crianças e adolescentes indígenas
ENTREVISTA: Assis da Costa Oliveira, Coordenador do GT ‘Direitos, Infâncias e Juventudes’, fala sobre especificidades na proteção de crianças e adolescentes indígenas
Celebrado no dia 19 de abril, o Dia do Índio é um símbolo da luta dos povos indígenas por seus direitos no Brasil. Crianças e adolescentes indígenas são vulneráveis a diversos tipos de violência, incluindo a violência sexual. Para entender sobre os direitos de meninos e meninas indígenas e a importância de um atendimento intercultural às vítimas de violência, conversamos com Assis da Costa Oliveira, professor de Direitos Humanos da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Assis da Costa Oliveira também é Mestre em Direito e coordenador do Grupo Temático “Direitos, Infâncias e Juventudes” do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais. Tem uma ampla trajetória no estudo dos direitos de crianças e adolescentes que vivem em comunidades indígenas – é autor do livro “Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes”. Confira a entrevista:
Em primeiro lugar, quais são as violações dos direitos da criança e adolescente mais praticadas contra os indígenas?
Na perspectiva dos direitos das crianças indígenas, o principal direito que lhes é violado é o direito à terra, um direito omitido no Estatuto da Criança e do Adolescente, e que é fundamental para a garantia dos demais direitos. Mas, também, há uma violação constante do direito à identidade e ao autoreconhecimento, algo que muitas crianças e adolescentes indígenas passam quando convivem nos espaços urbanos, especialmente nos estados do Nordeste, Sudeste e Sul do Brasil.
Além disso, há um déficit dos indígenas à educação escolar, principalmente a partir do fundamental e do ensino médio, além de uma séria situação de desnutrição infantil, violência sexual e suicídio de adolescentes e jovens, localizados nas regiões de expansão do agronegócio e de invasão dos territórios indígenas, como no Amazonas, Mato Grosso do Sul e Pará. Mais recentemente, tem surgido uma discussão sobre o trabalho de crianças indígenas na produção e venda de artesanato na região Sul do Brasil. A discussão sobre o trabalho infantil e as formas de lidar com ele têm colocado ao Sistema de Garantia de Direitos o desafio de repensar suas lógicas de compreensão sobre o trabalho, a infância e a relação destes com as condições de vida dos povos indígenas.
Você diria que a invisibilidade dos povos indígenas favorece esse tipo de violação?
A invisibilidade de sua identidade é certamente um fator que favorece a produção de violências contra crianças e adolescentes indígenas. Isso também ocorre no próprio atendimento da rede de proteção que, na maioria das vezes, não considera a identidade indígena das pessoas para realizar um atendimento intercultural. Assim, surgem duas violências institucionais: a primeira, de negação da identidade; a segunda, de realizar um atendimento deficitário e que, muitas vezes, produz novas violações institucionais no ato de atender em si. Mas eu diria que há também o caso da hipervisibilidade das crianças indígenas, quando os problemas sociais que as afetam ganham a atenção da mídia, da sociedade e do próprio governo, e passam a ser tratados como uma “causa de bondade” dos brancos. Esta lógica de amor, de bondade, por assim dizer, visa unicamente as crianças indígenas desde uma perspectiva individual – apartando o problema que lhe afeta no contexto cultural e social do povo a quem pertence – e renova a lógica de “salvação” da criança, ainda que o “indígena” nela tenha que morrer, no sentido de ter que ser afastada do convívio com seu grupo étnico. Assim, diria que esta “hipervisibilidade” das crianças indígenas, desde uma perspectiva da intervenção como uma “causa de bondade”, reproduz o racismo e o etnocídio dos povos indígenas ao considera-los incapazes de cuidar de suas crianças e ao priorizar o “problema da criança” e não as causas históricas e sociais que geraram este problema, além de impossibilitar qualquer forma de participação dos indígenas na identificação dos problemas e das formas de intervenção.
Quais são os principais fatores que devem ser avaliados ao se analisar a situação de vulnerabilidade das crianças e adolescentes indígenas com relação à violência sexual?
Existem muitos fatores que podem influenciar na produção de violência sexual contra as crianças e os adolescentes no contexto indígena. Em muitas comunidades, o aumento do consumo abusivo de bebidas alcoólicas tem sido um fator relevante – não só na violência (entre elas a sexual) cometida contra crianças e adolescentes, mas também afetando as mulheres e os idosos indígenas das comunidades. As condições de ocupação, desenvolvimento e insegurança do território indígena também pode intensificar diferentes formas de vulnerabilização à violência sexual – a exemplo da presença de militares, madeireiros clandestinos e mesmo de equipes das políticas compensatórias de grandes obras
Quando falamos da vulnerabilidade de crianças e adolescentes indígenas à violência sexual, precisamos destacar também o contato do povo indígena com a sociedade não-indígena, que pode gerar dois cenários. A primeira situação, de pessoas que tiveram um breve contato, é uma diferença cultural de percepção sobre a sexualidade que pode gerar um risco ao modo como lidam com a presença e as relações, incluindo as sexuais, com os não-indígenas. Já o segundo cenário, com pessoas com tempo maior de convivência, pode acontecer um processo de marginalização social e empobrecimento tão intensos que, muitas vezes, a exploração sexual aparece como uma alternativa de geração de renda, quando considerarmos a omissão histórica do Estado.
qual a maior dificuldade no atendimento de crianças e adolescentes indígenas vítimas de violência sexual?
A primeira dificuldade é o próprio reconhecimento da identidade indígena, que muitas vezes é negligenciado. A segunda dificuldade é fazer com que este reconhecimento gere um atendimento diferenciado à criança ou adolescente. Por outro lado, avançamos no aparato legal e operacional da escuta especializada de crianças e adolescentes vítimas e testemunha de violência, conforme estabelecido pela Lei 13.431/2017, regulamentada pelo Decreto n. 9.603/2018, cujo artigo 17 do estabelece o respeito aos modos de vida culturalmente diferenciados de povos indígenas e de comunidades tradicionais, além do reconhecimento das práticas tradicionais como medidas complementares ao atendimento institucional. Portanto, nesse caso, acredito que o desafio está em colocar em prática este reconhecimento no processo de atendimento das vítimas de violência sexual.
Ao meu ver, também existe a necessidade de um tradutor em língua indígenas para aquelas crianças e adolescentes que não falam o português como língua principal. Por último, me parece fundamental o cuidado que este tipo de atendimento precisa ter para não produzir um efeito de desorganização social ou conflitos internos. Deve-se pensar em formas de atendimento que consigam ser legitimados por lideranças internas – especialmente as indígenas – e sejam realizados com uma perspectiva de duração de médio à longo prazo, para ir acompanhando o modo como determinado povo passa a lidar com a situação, além de uma atenção específica à criança ou adolescente diretamente envolvido.
Quais os pontos que devem ser considerados ao se estabelecer um fluxo de atendimento intercultural para crianças e adolescentes vítimas de violência sexual?
Primeiro, diria que conhecer, reconhecer e valorizar os povos indígenas. Dentro disso, é essencial compreender que os povos indígenas possuem figuras internas que têm competência para atender as demandas ligadas a crianças e adolescentes. Um exemplo são os pajés, que realizam diversas formas de atendimento médico às crianças e aos adolescentes por meio de suas medicinas e práticas tradicionais de cura. Outro exemplo são as parteiras, que tradicionalmente realizam os partos e realizam um cuidado tradicional do que poderíamos chamar de “pré-natal”.
Então, reconhecer essas pessoas como parte da rede de proteção, ou do Sistema de Garantia de Direitos, e em igualdade de condições e tratamento, é fundamental para começar o diálogo e a construção de um fluxo de atendimento considerado intercultural. Mas só isso não basta: a própria construção do fluxo tem que contar com uma ampla participação de representantes indígenas, incluindo crianças e adolescentes, e alinhar em sua estrutura, a relação com todos os direitos indígenas, como o direito à autonomia.