Os caminhos do incesto: uma perversão silenciosa
Desenho contido no livro “A violência silenciosa do incesto”, de Graça Pizá
O desenho retrata uma figura metade menina, metade mulher. A autora-mirim, como milhares de outras crianças brasileiras, foi vítima de abuso incestuoso. Expressa, por meio da imagem ambígua, o conflito entre a sexualidade infantil e a adulta, que lhe foi imposta precocemente e que ela pouco compreende.
Outra ilustração –uma criança e um adulto no topo de uma montanha – revela um sonho recorrente entre as vítimas da violência sexual intrafamiliar: “Esse é o lugar onde eu mais sentia medo de ir com meu pai, na montanha. Lá não tem ninguém, e lá embaixo está o mar”. A montanha aparece, então, como representação do medo de reagir e da imensa solidão daquela criança.
Esses e outros tantos desenhos e relatos foram colhidos pela psicanalista Graça Pizá e sua equipe ao longo de 15 anos de existência da Clínica Psicanalítica da Violência, no Rio de Janeiro. “Criamos o primeiro centro de estudos e pesquisas sobre o incesto, que é referência no Brasil. E conseguimos detectar e mapear com precisão o universo afetivo da criança que está exposta a esse tipo de violência sexual”, afirma Graça.
Desenho contido no livro “A violência silenciosa do incesto”, de Graça Pizá
A psicanalista tomou contato com a questão do incesto quando trabalhava com meninas e meninos infratores na Funabem, na década de 1980. “Crianças muito pequenas apareciam com doenças sexualmente transmissíveis, gonorreia, Aids, mordidas ou hematomas, e na época esses indícios não eram investigados. Dentro da própria instituição hospitalar, os casos de abuso
sexual eram tidos como tabu”, conta. A maioria daquelas crianças vivia nas ruas depois de ter fugido de casa e do horror do abuso incestuoso. Muitas delas eram exploradas sexualmente e passavam a usar drogas ou a cometer crimes. “Constatei que essas crianças apresentavam sintomas psicológicos e uma gama de sentimentos, emoções e afetos muito intensos e confusos”, diz Graça, que também estudou o tema em sua dissertação de mestrado, O Círculo do Horror: a reclusão hospitalar na infância. “Como não se sabia para onde encaminhar esses casos – muitos saíam do hospital e voltavam para o convívio com o abusador –, decidi criar a clínica.”
Isso aconteceu em 1996. Desde então, Graça já atendeu em torno de 5 mil casos. Segundo ela, o incesto é uma violência invisível cuja ocorrência a sociedade resiste em admitir. De acordo com vários estudos, cerca de 70% dos abusos incestuosos são cometidos pelos próprios pais. Dentro das fronteiras familiares, o segredo escondido: o desejo sexual do adulto por aquele que ele mesmo gerou. “O limiar que separa um beijo, um carinho, o dormir nu ao lado da criança e o dar-lhe banho do abuso sexual é muito tênue. Essa extrema proximidade gera medo, um pavor muito grande na sociedade, que não suporta reconhecer essa violência”, afirma.
Por conta de sua experiência clínica e de todas as pesquisas realizadas, Graça cunhou o conceito de “criança-fetiche” – transformada em objeto do prazer alheio. O pai não ocupa o lugar simbólico de pai, a mãe não assume sua maternidade. E a criança não se reconhece como criança, já que não é ouvida, seus desejos não são respeitados e ela parece não existir para os adultos. Embora mantidos em segredo, esses “afetos emparedados” – no dizer de Graça – não são fantasia nem invenção das vítimas e sim uma realidade, ainda presente em muitas famílias, a ser enfrentada e revertida.