O Segredo da Tartanina: leitura preventiva
Cristina Fukumori, autora de ‘O Segredo de Tartanina’, fala como a literatura infantil pode prevenir o abuso sexual
A entrevista de hoje, no Dia Nacional do Livro Infantil, é com Cristina Fukumori, psicóloga clínica infantil e uma das autoras do livro ‘O Segredo de Tartanina’, que tem o objetivo de prevenir o abuso sexual de crianças. Junto as também psicólogas clínicas Alessandra Rocha Santos Silva e Sheila Maria Prado Soma, criou o Projeto Tartanina, que abrange várias frentes de atuação na prevenção do abuso sexual de crianças e adolescentes.
Hoje, a iniciativa das três psicólogas é baseada em 4 eixos principais: 1) Capacitação, Supervisão para profissionais da rede protetiva; 2) Produção de livros, materiais e pesquisas na área da prevenção, 3) Prevenção, empoderamento e protagonismo infanto-juvenil, e 4) Voluntariado (palestras e intervenções para entidades sem fins lucrativos). Confira mais sobre o projeto:
O projeto Tartanina nasceu de uma experiência em comum no atendimento de crianças vítimas de abuso sexual. Como psicóloga clínica, quais eram suas principais dificuldades nesses atendimentos?
As principais dificuldades no atendimento estavam relacionadas à forma de abordar as situações em que o abuso sexual ainda era uma suspeita, ou seja, como falar com uma criança pequena sobre a violência sexual supostamente sofrida era uma grande dificuldade.
Falar sobre sexualidade e sobre abuso sexual são tabus não apenas para os adultos, mas, para crianças também. Diante disso, romper com o complô do segredo das vítimas era um grande desafio e, pensamos numa estratégia lúdica, que trazia certa leveza para abordar a temática que é tão sofrível para aquela criança. Ilustrações coloridas foram uma boa estratégia para iniciar o assunto, as crianças se identificavam com a personagem da história. Temos relatos claros de “Tia, eu sou a Tartanina” durante os atendimentos.
Pode nos contar um pouco como foi o processo de criação da história de O Segredo de Tartanina?
Na experiência dos atendimentos às vítimas, percebemos que todas elas carregavam um grande baú do segredo (conforme aborda o livro) estava diretamente relacionado ao abuso sexual, principalmente no contexto intrafamiliar. Romper com esse segredo era um grande desafio. Depois, uma das autoras pensou na criação de um recurso para utilizar com as vítimas por meio da metáfora de uma tartaruga sem o casco para ilustrar o abuso de uma forma lúdica, trazendo leveza a um assunto que, ao mesmo tempo, é tão sério. O fundo do mar seria também uma metáfora do ambiente submerso, de segredo. E assim a história foi sendo construída a seis mãos.
No ano de 2006, terminamos de construir a história e, nesse momento, nós 3 nos revezávamos para utilizar o livro em nossos atendimentos. Procuramos algumas editoras na época, entretanto, apenas em 2010 conseguimos atrair o interesse da editora UDF para sua publicação, que aconteceu em 2011.
Como você, a Alessandra e a Sheila analisam a eficácia do livro O Segredo de Tartanina (e da literatura em geral) na prevenção do abuso sexual infanto-juvenil? Como funciona esse processo?
Após a publicação do livro, compreendemos que este poderia ser uma ferramenta eficaz na prevenção do abuso para todas as crianças e, assim a Sheila especificamente, passou a se aprofundar nas Literaturas de abordagem preventivas (LIAPS) identificando em seu estudo de mestrado a eficácia do livro na aquisição de habilidades autoprotetivas, que são chamadas de 3 Rs (erres), “reconhecer, resistir e relatar”. Assim juntamos a prática com os estudos científicos mais atuais, comprovando-se a eficácia do livro para as crianças conseguirem identificar situações potencialmente perigosas para o abuso sexual, resistir e relatar para um adulto de confiança.
Comprovada a efetividade do uso da literatura para atuar na prevenção ao abuso sexual, atestada no artigo “Avaliação de livros infantis brasileiros sobre prevenção de abuso sexual baseada em critérios da literatura”, de Sheila Maria Prado Soma e Lúcia Cavalcanti de Albuquerque Williams, o grupo passou a direcionar seus esforços para a criação, divulgação e realização de ações de capacitação de pais, educadores e outros profissionais que trabalham diretamente com crianças. Recentemente o livro foi objeto de duas pesquisas científicas atestando sua importância e eficácia para a prevenção do abuso sexual infantil.
O Projeto Tartanina cresceu e hoje tem várias iniciativas voltadas a profissionais que lidam diretamente com crianças e adolescentes. Pode nos explicar um pouco mais sobre essa iniciativa?
Ao longo dos anos, observamos a necessidade de ampliar o trabalho de prevenção com as crianças por meio da capacitação de profissionais que lidam diretamente com elas em seu dia a dia, como professores. Entendemos que muitos profissionais se sentiam despreparados para atuarem nesses casos no dia-a-dia. O abuso sexual pode causar inúmeros sintomas em suas vítimas – como comportamentos sexualizados, manipulação dos órgãos sexuais de forma exacerbada, curiosidades sexuais inapropriadas para a idade ou qualquer mudança súbita de comportamento, além de ansiedade, depressão e isolamento. Soma-se ainda os traumas emocionais e psicológicos – principalmente considerando que, na maioria das vezes, o agressor é uma pessoa próxima e que possui vínculos afetivos com a criança.
É diante da gravidade dessa violação que surge a necessidade dos trabalhos preventivos. Nesse sentido, a escola pode ser uma grande aliada, pois tem um importante papel na vida de seus alunos e os professores podem ser referências de confiança para eles. No ambiente escolar, a criança poderá ter acesso às formas de reconhecer, resistir e relatar, que são os pilares do desenvolvimento de habilidades de autoproteção ao abuso sexual. Dessa forma, nós do Projeto Tartanina, estruturamos capacitações de seis a doze horas de duração para profissionais realizarem esse trabalho como agentes de proteção.
Por fim, você teria dicas práticas de como usar o Segredo de Tartanina na prevenção e identificação de situações de abuso sexual infanto-juvenil? Tanto nas salas de aula (para professores e educadores) quanto para pais e responsáveis?
Indicamos usar o ‘Segredo da Tartanina’ com o auxílio de um adulto, por ser uma literatura preventiva. Dessa forma, as crianças podem ter todas as suas dúvidas sanadas. Em um grupo maior de crianças, como na sala de aula, sugerimos a contação de histórias, utilizando recursos como o teatro e fantoches, de acordo com a habilidade de cada professor. Também oferecemos dicas dentro do ‘Manual do adulto’, do Segredo de Tartanina, dividindo a história em módulos ou temas específicos a serem trabalhados, visando a prevenção. Hoje em dia, ainda recebemos várias fotos e relatos de profissionais sobre as experiências em suas salas de aula. Isso é muito enriquecedor!