Foco no abusador: por uma prevenção mais eficaz
Sala de atendimento a autores de violência sexual em Goiânia
“Não dá para prevenir a violência sexual contra crianças e adolescentes se pensarmos apenas em aspectos relacionados à vitima”, afirma a psicóloga Karen Michel Esber, pesquisadora e consultora em atenção à violência, de Goiânia (GO).
Em trabalho pioneiro no Brasil, Karen e outros profissionais desenvolveram o Programa de Atendimento ao Autor de Violência Sexual, em presídios de Goiânia, como parte do projeto Invertendo a Rota, realizado pela Universidade Católica de Goiás entre 2004 e 2007. O objetivo era compreender as motivações do indivíduo que pratica o abuso sexual infantojuvenil. Karen continua a pesquisar o tema em seu doutorado. Na entrevista abaixo, ela explica a importância do atendimento terapêutico ao abusador, além da punição legal.
BLOG: Por que pesquisar o comportamento dos abusadores?
KAREN: Não dá para prevenir violência sexual se pensarmos apenas nos aspectos relacionados à vítima. Há um debate internacional que preconiza que só conseguimos reduzir os níveis de incidência da violência sexual e de reincidência criminal do abusador se compreendermos quem é esse sujeito e pesquisar métodos de intervenção. Nossa pesquisa, que foi pioneira no Brasil, baseou-se em primeiramente abandonar o senso comum e conhecer de perto esses indivíduos. Afinal, tanto a sociedade quanto a mídia costumam considerá-los loucos, psicopatas, irrecuperáveis. Tachá-los desta maneira é fácil, mas propor uma solução eficaz para o problema é o desafio. Fomos mal-interpretados em nossas intervenções; muitos diziam que estávamos passando a mão na cabeça dos bandidos. Não era verdade. Buscávamos compreender aqueles homens e avaliar métodos de intervenção psicoterapêutica a fim de saber se essas intervenções contribuíam de fato para a melhoria de vida deles. E como a psicologia poderia ajudar esses sujeitos a refletir sobre a violência que cometeram, a relação com as crianças abusadas e o conceito de infância.
Quais foram as principais conclusões de sua pesquisa?
Em primeiro lugar, precisamos sair do senso comum e conhecer os abusadores. A imagem que vigora é a da monstruosidade. E nós, psicólogos, precisamos reconhecer nossa ignorância histórica em relação ao tratamento do tema, pois não sabemos quem são esses sujeitos nem como lidar com eles para reduzir a reincidência. Em segundo lugar, tanto nossas pesquisas quanto estudos internacionais realizados já há anos em países como o Canadá apontam que o atendimento psicoterapêutico realmente pode ajudar aqueles indivíduos. Alguns textos científicos dizem que índice de reincidência criminal para sujeitos tratados é seis vezes menor que para sujeitos não-tratados. Em nossa pesquisa, isso ficava evidente. Os presos atendidos diziam: “nunca tive oportunidade de conversar com um psicólogo, de falar sobre mim, minha infância, meus crimes”, “nunca uma pessoa veio me escutar antes de me julgar”. Esse feedback da intervenção como algo positivo também foi importante para nós, porque inicialmente tínhamos medo de que os agressores não aceitassem nossa proposta. Mas eles aceitaram e gostaram. Isso deve ser levado em consideração: esses sujeitos precisam de atendimento. Não adianta só punir, só encarcerar, mantê-los atrás das grades, sendo que daqui a dez anos eles vão sair. Os presos falavam que, se não houvesse alguém que os ajudasse a entender por que cometeram tal violência e como evitá-la, era possível que cometessem o crime novamente. São necessárias, portanto, medidas de saúde mental. A punição é legítima – o ato cometido é um crime e não pode ser ignorado. Mas não pode ficar só nisso.
Os abusadores são pessoas violentas?
Podem ser violentos, mas a maioria não é. São pessoas geralmente conhecidas das vítimas, indivíduos que estão presentes na vida dessas crianças: pais, tios, primos, avós, vizinhos, padrastos. A violência sexual muitas vezes acontece numa atmosfera de sedução, no qual o adulto consegue confundir a cabeça da criança, dizendo que aquilo é um segredinho entre eles, que o papai não está fazendo nada de mais porque faz a mesma coisa com a mamãe também e assim por diante. A força física nem sempre é usada. Há, então, a concepção equivocada de que os abusadores são pessoas necessariamente violentas, o que gera um problema na prevenção da violência sexual e preconceitos diversos. Ensinamos às crianças que elas precisam se proteger dos bêbados, dos dependentes de drogas, dos ociosos porque esses seriam perigosos. Mas não ensinamos que elas devem se proteger do próprio pai, do padrasto, do tio, do primo quando esses passam dos limites. Associamos a imagem de um indivíduo descontrolado ao agressor, mas o número de abusadores desconhecidos para as vítimas é pequeno. Os demais têm algum tipo de vínculo.