Foco no abusador: para evitar a reincidência

Ilustração de Michele Iacocca para a cartilha Navegar com Segurança da Childhood Brasil

O atendimento terapêutico ao abusador funciona? “A gente ainda precisa pesquisar mais para ter uma resposta definitiva. Acredito que sim, por estar engajada nessa causa, mas não pelos dados de minhas pesquisas, que foram pontuais”, afirma a psicóloga goiana Karen Michel Esber, pesquisadora, consultora em atenção à violência e autora do livro Autores de Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes (2009).

“As pesquisas internacionais revelam que sempre existe um índice de reincidência. Mas, se conseguirmos recuperar ao menos uma porcentagem desses sujeitos, quantas crianças não serão protegidas?” A seguir, a continuação da entrevista publicada na postagem passada.

Existem diferenças de tratamento para um abusador e para um pedófilo?

Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que, do ponto de vista clínico, os abusadores nem sempre são pedófilos e os pedófilos nem sempre abusam sexualmente de crianças. Durante os atendimentos [do programa Invertendo a Rota, realizado em Goiânia entre 2004 e 2007], acompanhamos três casos de pessoas que tinham fantasias sexuais, desejo e interesse sexual por crianças, mas que nunca chegaram às vias de fato. São, portanto, considerados pedófilos. Obviamente que o tratamento de um pedófilo é diferente do que aquele direcionado a um sujeito que sofreu violência sexual na infância e atualmente abusa de crianças para repetir esse trauma. Como o caso do Henrique [nome fictício], por exemplo. Havia sofrido abuso na infância e queria abusar de uma criança do mesmo jeito que ele tinha sido violentado a fim de aliviar a própria raiva que sentia. Henrique não tinha a atração sexual por crianças, ele não é um pedófilo. A questão dele era a vingança. Um terapeuta não trata nenhum sujeito da mesma forma que outro. É preciso assumir um tom de singularidade para cada caso e identificar como esse indivíduo significa essas violências que ele comete.

Mas existem traços em comum entre os abusadores?

Nunca podemos generalizar, mas posso afirmar que, entre os agressores que acompanhamos, há um índice mais elevado de violências sofridas na infância – físicas, psicológicas e sexuais – e de abandono familiar, negligência. Foram raríssimos os casos de os abusadores que disseram ter tido uma infância feliz. O sujeito não consegue elaborar seus traumas e tende a repetir as agressões que sofreu, porém agora como aquele que “está no poder” e que pode, então, subjugar. O Henrique falava: “era bom quando abusava deles porque eu tinha o poder; eu os maltratava porque, quando fui maltratado, não pude fazer nada”. Ele repetia, então, aquela infância mal vivida invertendo os papéis.

O senso comum diz que os abusadores têm problemas sexuais. É verdade?

Uma das conclusões do meu livro é justamente que a sexualidade do abusador é uma área desconhecida para a gente. Quando fiz a pesquisa de mestrado, analisei os processos judiciais desses sujeitos. Era unânime entre juízes e promotores que essas pessoas tinham sexualidade exacerbada, problemas com a libido. Usavam termos como “o monstro maníaco com sua tara libidinal”, dando a entender de que o problema do abusador sexual seria restrito à esfera da sexualidade. Mas não é; pode ter origem na infância trágica, na elaboração mal sucedida de seus traumas, na visão distorcida da função parental, de quem é a criança, do que significa a infância. O abuso não passa necessariamente pela questão do desejo sexual. Eu perguntava ao Henrique o que ele sentia quando abusava dos meninos. A resposta era a mesma, sempre: “raiva”, ele dizia, “muita raiva”. Era o que lhe trazia prazer.

Um indivíduo pode evitar cometer um abuso sexual?

É possível prevenir. Durante o projeto, desenvolvemos um programa lindo de divulgação nas rádios de Goiânia. Divulgávamos: “Se você tem atração sexual por crianças e adolescentes, existe ajuda, nos procure.” E dávamos o telefone. Houve muitas respostas e atendemos efetivamente seis casos de pessoas que sentiam desejo sexual por crianças. O trabalho terapêutico buscava conscientizar esses indivíduos de que os meninos e as meninas funcionavam para eles como as drogas para um dependente químico. Por isso, ensinávamos que eles deviam evitar estar sozinho com crianças e outras situações de vulnerabilidade, além de trabalhar com as fantasias sexuais. Como um heterossexual, que em grande parte de sua vida sentirá atração pelo sexo oposto, ou um homossexual que será atraído por indivíduos do mesmo sexo, o pedófilo terá desejo sexual por crianças. Atendemos um rapaz que nos procurou ao ser flagrado pela esposa acariciando um menino. Ele nos pediu ajuda, ainda se encontra em tratamento e diz que a terapia o tem ajudado a acreditar nele mesmo, a ser capaz de se conter e não se aproximar de crianças.

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