Enfrentamento da violência deve envolver o homem e a mulher
Série As multicausalidades da violência sexual contra crianças e adolescentes
O enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes tem que envolver tanto a mulher quanto o homem. Essa é a opinião do psicólogo e doutor em Saúde Coletiva, Marcos Nascimento, em entrevista para a Childhood Brasil. Ele cita o trabalho do Promundo, organização social como um dos exemplos do trabalho de prevenção da violência sexual que incluem os homens no enfrentamento da problemática. Nascimento fala também sobre o potencial da internet como ferramenta de prevenção e enfrentamento.
Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.
Childhood Brasil – São muitas as notícias de violência contra crianças e adolescentes. Estamos mais violentos ou denunciamos mais?
Marcos Nascimento – Talvez um pouco das duas coisas. Acho que temos progredido no âmbito dos mecanismos de denúncia. Já temos mais de 20 anos do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e com isso a percepção sobre os direitos das crianças e adolescentes também tem mudado. Nesse sentido, acho que ainda que tenhamos problemas no Sistema de Garantia de Direitos – não podemos esquecer que o Brasil é um país continental e com muitas diferenças e desigualdades entre suas regiões – tem-se procurado sensibilizar e alertar diferentes atores sobre a problemática da violência. Isso leva, por exemplo, a que determinadas atitudes que antes não eram vistas como violência, sobretudo no âmbito doméstico, sejam tratadas como tal. Mas precisamos prestar atenção por que o que aparece na mídia são os casos de violência severa, muitas vezes letal. Mas há um conjunto de violências que ainda permanece naturalizado e que não costuma ser divulgado. Esse é o caso dos castigos físicos e humilhantes, por exemplo.
Childhood Brasil – Quando se fala em violência contra crianças e adolescentes são predominantes mais casos de violência contra meninas do que contra meninos ou não? A que se deve isso?
Marcos Nascimento – Primeiro precisamos saber de que tipo de violência estamos falando, já que há um conjunto amplo de atos relacionados a abuso de poder e de agressão física e psicológica, sexual, abandono, maus tratos, exploração sexual comercial, castigos físicos e humilhantes, violência de gangues, e, em escolas, bullying, somente para citar alguns. Por isso precisamos compreender como esses atos acontecem, abordando sua origem, os vieses econômicos, sociais, culturais, de gênero, de orientação sexual envolvidos, para podermos interferir tanto na prevenção quanto no apoio e assistência. Dependendo do tipo da violência, ela pode afetar mais meninas ou mais meninos. Por exemplo, ainda que haja meninos envolvidos na exploração sexual comercial, sabemos que as meninas estão mais arroladas nesse processo. Além disso, no caso das travestis adolescentes em situação de exploração sexual, temos outra face que envolve não somente o perfil de gênero, mas, sobretudo, questões relacionadas à orientação sexual e identidade de gênero. No caso dos castigos físicos, parece que os meninos sofrem abusos mais severos. Segundo um ordenamento de gênero, o uso desse tipo de violência parece revelar que os meninos precisam aprender a serem homens por meio do sofrimento físico e passando por rituais de violência. Isso acontece não somente no âmbito doméstico, mas também entre grupos de meninos na escola. Sempre cito o filme Clube de Luta como um exemplo desses rituais de aquisição de masculinidade pelo viés da violência. Dito de outro modo, dependendo de que tipo de violência estamos falamos vamos ter mais meninos ou mais meninas envolvidos e envolvidas.
Childhood Brasil – As mudanças na configuração da família brasileira podem afetar as causas e as soluções para o enfrentamento à violência sexual contra meninos e meninas?
Marcos Nascimento – Acho que pode sim. Se anteriormente, o homem era considerado o chefe da casa e detentor do poder econômico e, por conseguinte, aquele que tinha a palavra final sobre qualquer assunto dentro da casa, isso vem mudando gradualmente nos últimos 20 anos. Se isso contribui ou não para as causas e para o enfrentamento, não teria certeza de uma relação de causa e efeito direta. Acredito que essas mudanças, se pensamos segundo um perfil de classe social, trazem um rearranjo na educação das crianças e adolescentes. Em muitos casos, não há a figura masculina, em outros casos há rearranjos familiares, re-casamentos, filhos do tipo os “meus”, os “seus”, os “nossos”. Enfim, uma pluralidade bastante grande nos arranjos familiares. Isso não produz necessariamente vulnerabilidades para as crianças e adolescentes. Mas o advento da internet e a facilidade, para o bem e para o mal, de mecanismos de sedução das crianças e adolescentes traz outras preocupações, que podem se desenrolar no ambiente doméstico.
Childhood Brasil – Quais preocupações você citaria?
Marcos Nascimento – Um colega sueco que trabalha com abuso sexual, dizia há algum tempo, sobre esse uso da tecnologia, como isso vem prolongando a vitimização de crianças e adolescentes que sofrem abuso. Ele relatou uma história de uma adolescente que teve sua intimidade sexual com um garoto de sua idade postada em redes sociais, etc. O que seria um ato de intimidade sexual se converteu num episódio de abuso e, como ele chamava a atenção, cada vez que esse vídeo era acessado, era como se ela tivesse novamente sendo abusada. Creio que teremos que lidar com outros mecanismos de abuso e de violência para além daqueles que já estávamos acostumados.
Childhood Brasil – Na sua opinião, quais fatores podem motivar a violência sexual?
Marcos Nascimento – Acho que o tema da internet e das redes sociais, se por um lado, podem vulnerabilizar, por outro podem ser ferramentas extremamente interessantes para o enfrentamento dessa problemática. A questão que está colocada é saber como utilizá-las e com que perfil ético. As desigualdades de gênero, social, econômica, ainda são estruturantes dessas violências. E, certamente, o Sistema de Garantia de Direitos, no que tange à prevenção dessas violências ainda tem muito o que fazer. É necessário construir uma agenda política com diferentes atores – saúde, educação, direitos humanos, assistência social, etc – e isso não é tarefa fácil. Mas é fundamental se queremos avançar na direção de uma resposta efetiva.
Childhood Brasil – Como trazer o homem – tanto o adulto quanto o menino – e tanto o agressor quanto a vítima, para o debate sobre a violência sexual?
Marcos Nascimento – A solução certamente passa por ações focadas no debate de gênero. Esse homem ou garoto, por exemplo, envolvido em uma situação de exploração sexual, na grande maioria das vezes, não se sente como aquele que comete um delito. Precisamos sensibilizar garotos, rapazes e também homens adultos, acerca da exploração sexual como algo que viola os direitos humanos da criança e do adolescente. No caso da criança é de mais fácil entendimento, mas no caso dos adolescentes, a tendência ainda é culpar a vítima, como se estivesse naquela situação por que quer. O assédio sexual a adolescentes também não é visto como algo violento. Em ambos os casos, parte-se da premissa que esses homens, nada mais estão fazendo do que cumprir o seu papel de homem, de macho em que a sexualidade é um pilar estruturante. Acredito que iniciativas como o trabalho que o Promundo faz com homens no campo da prevenção da violência contra mulheres e meninas, o que o Instituto NOOS faz com a linha telefônica com pessoal especializado para crianças e adolescentes mostram a possibilidade de enfrentamento da problemática. Ambos trabalhos têm na sua raiz uma perspectiva relacional de gênero e buscam reduzir essas iniquidades que falamos anteriormente.
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