Disque-Denúncia necessita de maior capacitação de profissionais
Criador do primeiro telefone nacional gratuito de denúncia anônima contra casos de abuso sexual infantojuvenil, o pediatra Lauro Monteiro atua há quase 30 anos na defesa dos direitos da criança e do adolescente. Fundador da Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia) e atual editor do site Observatório da Infância, Lauro participou da equipe que ajudou a elaborar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Em sua avaliação, o Disque-Denúncia (Ligue 100) do governo e os Conselhos Tutelares são importantes, mas precisam receber capacitação e treinamento para lidar com os casos delicados.
Como teve início o seu interesse pelos direitos da infância e juventude?
Eu comecei a trabalhar com crianças antes de me formar. Logo me tornei chefe da pediatria do Hospital Souza Aguiar, no Rio de Janeiro, no início da década de 80 e também montei o meu próprio consultório, onde atendo até hoje na zona sul. Muito cedo, percebi as diferenças entre ser uma criança vinda de uma família com recursos financeiros, podendo fazer todos os exames necessários, e aquela que precisava ser atendida de emergência em um hospital público.
Queria fazer alguma coisa para que todas as crianças pudessem ter um atendimento pelo menos parecido ao que recebiam no meu consultório. Naquela época, era proibido que as mães acompanhassem os filhos doentes. Mesmo recebendo muitas críticas, passei a deixar que as mães ficassem com as crianças.
Fui muitas vezes chamado de louco pelos colegas, mas me apoiei em estudos na área de psicologia que mostram que os doentes que ficam sozinhos demoram mais para se recuperar e defendia que era uma questão de dignidade. Em 88, levei os resultados para congressos e o trabalho ganhou até prêmios. Hoje, os hospitais são obrigados a se organizar para prever que o familiar acompanhe a criança em tempo integral.
Por que surgiu a ONG Abrapia (Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência) e quais os principais projetos desenvolvidos?
Fundei a Abrapia em 1988, porque meu trabalho no Hospital mostrou que precisava fazer algo mais, agir para evitar que os casos de violência sexual acontecessem e fazer tudo para garantir os direitos de crianças e adolescentes, quando ainda nem existia o ECA. Nossa primeira iniciativa foi montar uma estrutura para criar o Disque-Denúncia, atendimento por telefone para casos de abuso e violência sexual contra crianças e adolescentes, em todo o Estado do Rio de Janeiro.
Como o serviço passou a abranger todo o país?
Surgiu muito da necessidade de acabar com a imagem internacional de que Brasil não fazia nada para acabar com a exploração sexual infantojuvenil. Em 1998, fomos chamados pelo Ministério da Justiça para criar um telefone federal. Inicialmente, trabalhamos apenas a questão da violência sexual, inclusive com o apoio da Childhood. Em 2003, no entanto, com a troca de governo, o ministério nos chamou e informou que iriam assumir o programa. Hoje é o chamado Disque 100.
Qual sua avaliação dos resultados do Disque 100 hoje?
É um serviço muito importante, para coibir os casos de violência infantil, mas acho que desvirtuou-se um pouco do projeto inicial. Hoje, eles decidiram ampliar e incluir toda forma de violência contra a criança e o adolescente, não apenas sexual. No mundo inteiro, as experiências que dão certo têm números específicos para cada tipo de problema. O bullying tem um número, o abuso sexual infantil outro, a violência doméstica outro, etc. É muito difícil um atendente entender sobre todos os assuntos e dar o encaminhamento correto, eles precisam ter treinamento específico.
Por que a Abrapia fechou as portas depois de 20 anos de iniciativas pioneiras?
Em 2006, desenvolvíamos alguns projetos que não foram mais incentivados, porque eram considerados iniciativas do governo anterior. O Projeto Sentinela, por exemplo, do governo federal, trabalhava no Rio de Janeiro com núcleos de atendimento multiprofissional, essenciais para o acompanhamento dos casos de violência sexual. Contratamos muitos profissionais na época, e não tivemos como pagá-los, porque a prefeitura deixou de repassar a verba e ficamos sem receber dois meses. Até hoje ainda tento solucionar este problema burocrático e as dívidas trabalhistas. Ainda passa pela cabeça a idéia de reabrir a ONG, mas acredito que não, tenho que agir de outras formas. Hoje sou editor do site Observatório da Infância (www.observatoriodainfancia.com.br) e procuro sempre publicar as novidades desta área.
Depois de 20 anos da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, como avalia o cenário atual no Brasil? Houve avanços e quais as dificuldades ainda encontradas?
Depois do trabalho realizado no Hospital para permitir que os familiares acompanhassem os pacientes, fui convidado a participar do grupo que ajudou na elaboração do ECA. Avançamos muito de lá para cá. Antes, se falava apenas em exploração comercial de crianças, nem se mencionava a violência dentro de casa, era coisa de menino de rua. Hoje, sabemos que acontece em todas as classes sociais. Algumas pessoas ainda não valorizam o ECA, porque acham que só protege o infrator. Os Conselhos Tutelares ainda são muito precários em alguns locais e só com muita pressão da sociedade recebem apoio do governo. É um tema muito delicado e as pessoas que trabalham nos Conselhos precisam ser melhor capacitadas, porque trabalhar com abuso sexual é complicadíssimo. De uma forma geral, as coisas estão melhores na luta pelos direitos da infância e adolescência, mas há muito para desenvolver.