Depoimento: sequelas de quem sofreu abuso sexual e tratamento

  Imagem: SXC

“O dano maior que fica depois de um a abuso é a relação de desconfiança com o mundo e não saber o que é real. Foi muito complicada a descoberta da sexualidade para mim, com a falta de confiança nos relacionamentos, porque as imagens voltavam a toda a hora, ficam no inconsciente”, conta Samara Christina (nome fictício), 34 anos, vítima de abuso sexual na infância.

Motivada pela Campanha Infância Livre, promovida pela Childhood Brasil em meio de 2010, com a adesão de vários artistas e participação, inclusive, da Rainha Silvia da Suécia, fundadora da instituição internacional, ela resolveu dar o seu depoimento para ajudar na prevenção do abuso sexual infantil.Durante a entrevista, ela se emocionou várias vezes e, mesmo com a voz embargada, contou como conseguiu superar o trauma e refazer sua vida, com o objetivo de ajudar outras pessoas que estejam passando pelo problema e não sabem como agir:

Quais as principais marcas que ficam da agressão?

Até hoje, não sou capaz de ver uma cena de violência sem entrar em desespero, mesmo sabendo que é ficção eu entro em parafuso.Tenho ainda os meus rituais de limpeza, fico horas no banho, com a sensação de estar suja, passo muito tempo me limpando. E também lavo as mãos de 5 em 5 minutos.

O abuso deixa muitas marcas e abala toda a família e são anos de terapia. A cabeça de uma criança agredida sexualmente fica confusa e carregamos essa dor por muito tempo, sem saber o que fazer. O agressor é uma pessoa doente que tem dupla personalidade. No meu caso, era o meu próprio padrasto, uma pessoa que deveria me proteger, mas me violentava. É mais que uma traição.

Quando você começou a procurar tratamento e ajuda?

Eu já tinha 19 anos e morava na França na época, quando tive coragem e busquei uma rede de proteção médica com assistência psicossocial, depois me direcionaram para um centro especializado em vítimas, que cobrava uma taxa simbólica. Passei por um tratamento individualizado e tomei remédios. A terapia é fundamental e o apoio da família e das pessoas mais próximas. Sozinha a gente não consegue, não tem recursos para prosseguir uma vida normal.

Eu tive a oportunidade de refazer minha vida, mas quantas pessoas não têm e acabam caindo nas drogas, porque sofrem muito, se isolam da sociedade.

Acredito que é fundamental tornar o acesso à ajuda terapêutica mais fácil no Brasil, porque tem muita gente que não têm forças para procurar ajuda, não consegue.

O que te motivou a contar o seu caso?

O que me motiva a falar é querer dar apoio a quem está passando pelo problema e também mostrar que a legislação precisa de mudanças. Fiquei encantada com a última campanha da Childhood e feliz de saber que o assunto finalmente estava sendo discutido de forma séria e com abrangência nacional. Percebo que em países como França, Bélgica e Alemanha ainda existe o abuso, mas a sociedade já está mais consciente. No Brasil, estamos começando e fico feliz com esta mobilização.

O que você acha que necessita ser feito para prevenir esta situação?

As crianças precisam pedir ajuda para as pessoas mais próximas, mas não sabem como. É responsabilidade dos adultos ficarem atentos às reações diferentes da criança, prestar atenção em quem cuida na escola, onde dormem, o que fazem. As escolas também precisam incentivar a denúncia e informar às crianças que o problema existe. E quem estiver passando por esta situação precisa de ajuda de profissionais especializados em psicoterapia.

Como foi o processo para se recuperar e reestruturar a sua vida?

Depois que saí do processo de anos de dor, entendi que tinha sido vítima, mas não podia viver eternamente desta forma. Precisava sair do fundo do poço que me colocaram. Não é consciente, a gente se relaciona com um pé atrás, se defende com agressividade dos relacionamentos. Leva muito tempo e o amor da família e do marido ajuda muito. Não é todo mundo que aguenta, porque as sequelas voltam, tem que ser uma pessoa que te ama muito. Os familiares também precisam procurar forças e ajuda de profissionais. O que me ajudou também foi a fé (…).

O tratamento é fundamental para reconstruir sua identidade. Hoje sou casada, e o amor e carinho do meu marido foram importantes para minha recuperação. Planejo ainda ter filhos e construir uma família. Quero viver minha vida sem pensar no passado e fazer a minha parte alertando para que nenhuma criança precise passar por este drama.

Texto originalmente publicado em 19/09/2011.

Artigos relacionados