Caminhos do incesto: a família em xeque

Desenho contido na cartilha “Abuso sexual: que violência é essa?” (Cearas-USP)

Quando o psiquiatra Cláudio Cohen, da Faculdade de Medicina da USP, começou a pesquisar sobre o incesto para sua tese de doutorado, não havia dados sobre o fenômeno no Brasil. Foi preciso, ao lado do responsável pelo setor de sexologia do Instituto Médico-Legal de São Paulo, perguntar às vítimas sobre quem tinha sido o abusador, já que apenas o exame era feito sem questionamentos adicionais.

Essa pesquisa trouxe à tona os primeiros dados sobre a ocorrência de abusos incestuosos entre os casos atendidos. Da constatação do fenômeno às possibilidades de tratamento, surgiu o Centro de Estudos e Atendimento Relativos ao Abuso Sexual (Cearas), ligado à USP, em 1993. A assistência não é oferecida apenas à vítima; cerca de 290 famílias, encaminhadas pela Justiça, já foram atendidas nos 17 anos de existência do centro. “Não estamos fechados na questão assistencial. Produzimos trabalhos científicos e participamos de congressos para tornar público o tema. Afinal, uma das funções da universidade é partilhar conhecimento e, assim, possibilitar que a sociedade se aprimore”, diz Cláudio.

A experiência dos profissionais do Cearas tem revelado como ainda persistem preconceitos e equívocos quando o tema é o abuso incestuoso. “Muitos acham que o segredo impera nos casos de abuso intrafamiliar porque há um pai déspota, um membro da família que é violento e alcoólatra, criam todo um estereótipo. Mas esse tipo de abuso raramente envolve violência física ou uma ameaça de agressão corporal, é tudo mais sutil”, afirma o psicólogo Tadeu Roberto de Abreu, um dos integrantes da equipe do centro. “O carinho e o erótico aparecem de forma confusa à criança, ela não sabe discernir quando e como o adulto está passando dos limites. Às vezes, é o único afeto que recebe em casa. Por isso, a experiência incestuosa não é necessariamente traumática num primeiro momento, não será sentida de imediato com horror.” Na maioria dos casos, o agressor é uma pessoa querida dentro da família. De acordo com Tadeu, quando o sentimento de raiva surge na terapia, nem sempre é direcionado ao abusador, mas sim às mães, que não cuidaram, não prestaram atenção nem escutaram os apelos do filho.

Outro estereótipo recorrente diz respeito ao gênero do abusador. A mídia e a sociedade em geral associam o abuso sexual de crianças e adolescentes a uma prática predominantemente masculina. “Ora, nos Estados Unidos já existem vários processos contra mulheres pedófilas e professoras que abusam de alunos”, diz Cláudio Cohen. Segundo ele, a total falta de compromisso com a função materna por parte de muitas mulheres acaba expondo a criança ao risco – são aquelas mães que não percebem nada ou não agem de modo a interromper o abuso. “A figura da mãe parece estar envolta numa ideia de santidade que não pode ser questionada. Mas aqui vemos casos de mães não somente coniventes, mas também perversas e que fazem mal aos filhos”, completa Tadeu. De acordo com ele, as pessoas não questionam o acesso que as mães têm ao corpo dos filhos nem certos cuidados ou toques claramente abusivos. “A mãe que pede para o filho adolescente dormir na cama com ela ou que se oferece para dar banho nele, por exemplo”, diz o psicólogo.

Uma constatação importante, segundo os profissionais do Cearas, é o fato de que indivíduos que não receberam atenção suficiente durante a infância ou mesmo que sofreram abuso sexual de parentes quando pequenos – e não tiveram atendimento adequado – tendem a repetir a situação em sua própria família, seja atuando da mesma forma, seja buscando um parceiro que reproduza tal comportamento. Por isso, o Cearas passou a atender famílias. “Não só a vítima e o abusador precisam de tratamento psicológico”, diz Tadeu. “Um irmão que presenciou o abuso de uma irmã, um parente a quem a violência tenha sido revelada ou mesma a mãe, que em anos de abuso contínuo não desconfiou de nada nem se mobilizou para que o sofrimento da criança terminasse, todos esses também necessitam de atendimento. Somente tirar o abusador do convívio familiar não vai resolver.”

A ocorrência do abuso sexual dentro de casa revela que, provavelmente há algum tempo, aquela família já apresenta um desajuste nas relações interpessoais e na definição dos limites físicos e afetivos entre os membros. Em boa parte dos casos, o pai ou a mãe (ou ambos) não exercem a função parental (talvez porque não a tiveram dentro de casa, quando eram crianças), ou seja, o papel de cuidar, educar, orientar os filhos, impor limites e delimitar fronteiras para a individualidade de cada um.

*Post originalmente publicado em 23/09/2010

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