Caminhos do incesto: a criança-fetiche
As psicanalistas Graça Pizá e Gabriela Barbosa ganharam, em 2005, o Prêmio Jabuti pelo livro A Violência Silenciosa do Incesto(2004), no qual revelam o “vocabulário ilustrado dos afetos emparedados”, uma síntese de conceitos expostos nos desenhos realizados pelas vítimas do abuso incestuoso atendidas na Clínica Psicanalítica da Violência, fundada pelas duas terapeutas. São imagens pungentes, de crianças que ainda não sabem elaborar o que estão sofrendo, mas que expressam, por meio das ilustrações, a situação de horror que vivem em casa.
“Antes de vir me tratar, eu era assim, sem braços para me defender”, diz uma menina sobre a imagem de si mesma com batom vermelho e salto alto. “Agora fiquei mais feliz”. “Ela se desenha como menina de novo, mas põe garras em lugar das mãos para se defender daquele que era amoroso e se tornou um monstro”, explica Graça.
Segundo a psicanalista, a criança tem sexualidade própria e bem diferente daquela do adulto, cujo desenvolvimento acompanha a evolução natural do ser humano. “A violência sexual interrompe esse processo, dilui as fases da sexualidade e joga a criança imediatamente numa experiência adulta”, afirma. Graça compara a “implosão afetiva” sofrida pelas vítimas à implosão das bases de um prédio em construção. “Ora, sem a base, você acha que esse edifício vai ser erguido? É o que acontece com a psique da criança.”
Em muitos desenhos, a figura do pai abusador assume contornos cruéis. “Aos olhos da criança, o pai perverso é aquele que trai seu amor, que não reconhece seu lugar e seu direito à felicidade. No interior dessa luta, dessa dominação, surge na criança o sentimento de impotência. A traição amorosa impõe a submissão, o rebaixamento afetivo e moral e, por fim, sofrimento e humilhação”, define Graça.
Com base em sua experiência de três décadas de atendimento, a psicanalista criou o termo “criança-fetiche” para tentar explicar o fenômeno do incesto, ainda mantido em segredo por muitas famílias, independentemente de sua classe social. “Essas crianças não são consideradas como sujeitos, com direitos e desejos, mas transformadas em objetos”, afirma. Sem conseguir se defender, paralisada pelo medo e pela incompreensão, a vítima de incesto não aprende a perceber, a identificar, a sentir ou mesmo a internalizar os afetos essenciais à vida humana.
Por isso, diz Graça, é fundamental que a criança possa falar da violência que está sofrendo a fim de sair dessa situação. Em muitos casos, ela se expressa por meio da linguagem não-verbal, a exemplo dos desenhos. Somente com a possibilidade de expor suas emoções, conseguirá entender o sentido da violência sofrida. E, então, como diz o texto de apresentação ao primeiro filme de Graça, o curta A Escuta do Silêncio, de 2003, a criança “compreenderá, por fim, a lógica dos afetos emparedados. E sairá deste abismo de terror para encontrar sua travessia.”
*Post originalmente publicado em 20/10/2010.