Lei Maria da Penha em casos de violência doméstica contra crianças

A Lei Maria da Penha é uma ferramenta eficaz de auxílio ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em casos de violência doméstica contra a criança. Essa é a opinião da juíza Rafaela Caldeira Gonçalves, da Vara de Violência Doméstica do Foro Regional de Vila Prudente, em São Paulo. Em entrevista à Childhood Brasil, a juíza faz um balanço dos seis anos de existência da lei, ressaltando o caráter preventivo da mesma, a implantação de atendimento multidisciplinar à vítima, e sua aplicação no caso de vítimas crianças. A íntegra da Lei Maria da Penha pode ser lida aqui ou baixada em aplicativo para celular disponibilizado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.

Childhood Brasil – Como a Lei Maria da Penha pode ser auxiliar ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)?

Rafaela Caldeira Gonçalves – A possibilidade de suspensão do direito de visitas do pai à criança, bem como de seu afastamento do lar, de proibição de contato ou de frequência aos locais onde esteja a criança, logo após a notícia sobre a ocorrência do crime, são ferramentas extremamente eficazes para que as vítimas crianças não fiquem mais sujeitas à situação de risco em que se encontravam até então. Isso para não deixar de mencionar o caráter programático da Lei Maria da Penha no que se refere à criação de políticas públicas para a proteção da mulher, no qual está abrangida também a menina.

CB – Acredita que a lei deveria ser mais abrangente, considerando as vítimas do sexo masculino? Por quê?

RCG – Acredito ser essencial a existência de mecanismos idênticos para proteger também os meninos que são vítimas. Sempre me incomodou o fato de julgar na Vara de Violência Doméstica somente os casos de vítimas do sexo feminino, ou quando, por exemplo, esses crimes foram praticados contra vítimas de ambos os sexos, um menino e uma menina. Entendo, por outro lado, que a atenção do legislador, na elaboração da Lei Maria da Penha, não era voltada às crianças e aos adolescentes, mas sim à mulher, como gênero. Portanto, acredito que caiba ao juiz corrigir tal questão, interpretando a lei conforme a Constituição Federal, que consagra o princípio da igualdade como um dos direitos fundamentais.

CB – O art. 29 da Lei Maria da Penha prevê a atuação de equipes de atendimento multidisciplinar, compostas por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde. Esse tipo de atendimento tem sido implementado?

RCG – Posso falar a respeito das Varas de Violência Doméstica existentes no Estado de São Paulo, onde atuo. As sete varas existentes na capital estão equipadas com setores técnicos compostos por psicólogas e assistentes sociais. Tais equipes atuam primordialmente na elaboração de relatórios, que fornecem um panorama da dinâmica familiar das partes. Além disso, esses setores estão encarregados de realizar o encaminhamento de quaisquer das partes (réu, vítima e dependentes) para a rede pública de atendimento, para que possam ser acolhidos em abrigos, receber tratamento psicológico, psiquiátrico ou ainda de dependência de drogas ou de alcoolismo. O Tribunal de Justiça de São Paulo tem realizado a capacitação desses profissionais com o oferecimento de cursos e workshops na área de violência doméstica e de abuso sexual contra crianças.

CB – As denúncias com base na Lei Maria da Penha devem ser encaminhadas para algum juizado especial?

RCG – As denúncias de abusos contra vítimas crianças cometidos dentro do contexto doméstico familiar podem ser feitas em qualquer delegacia, nos Conselhos Tutelares e no Ministério Público. Essas instituições encaminharão prontamente tais fatos ao Judiciário, mais especificamente à Vara de Violência Doméstica, sob a forma de algum tipo de requerimento de tutela de proteção a essas vítimas.

CG – A Lei aborda não apenas a punição, mas acima de tudo ações de prevenção, proteção e assistência às mulheres em situação de violência. Nesse aspecto, houve avanços?

RCG – Sim, com certeza. Em especial no Estado de São Paulo, instituições como o Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria e a Polícia Civil, além da Coordenadoria da Mulher, órgão da prefeitura, estão em constante contato para a discussão de possíveis parcerias, bem como para debates que envolvam a participação da sociedade civil. Não pode se deixar de mencionar também a existência de Projetos Sociais comuns, como o Curso de Reeducação Familiar, realizado pela Academia de Polícia, cujo encaminhamento dos agressores é feito pelo Judiciário, e ainda a recente campanha de conscientização realizada pelo Ministério Público com a distribuição de mais de 20 mil cartilhas sobre esta temática, nas estações de metrô de São Paulo.  Porém, é indiscutível que muito há ainda a ser feito em termos de estruturação dos serviços prestados por todos esses órgãos para melhor atendimento das vítimas de violência doméstica e tratamento dos agressores.

CB – Qual é a sua avaliação da aplicação da Lei Maria da Penha até o momento? Quais são os próximos passos da discussão em torno dela?

RCG – A lei foi importante para a conscientização da sociedade civil quanto ao tema. Isto já é por si só um grande avanço. Ainda precisamos ampliar a quantidade de delegacias especializadas, assim como de Varas de Violência Doméstica em todo país, especialmente no interior dos estados, além de um maior fortalecimento de toda a rede pública de atendimento à mulher vítima de violência, com a criação de mais abrigos e espaços de acolhimento e orientação. Sustento também que maior atenção deva ser dada a programas de recuperação de agressores. Não há como prevenir a violência doméstica sem pensar no tratamento para o homem que não sabe se relacionar em família sem ser de forma violenta.

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